É muito confortável transferir 100% da responsabilidade de algo muito ruim para terceiros, ainda mais quando essa figura chama para si símbolos de tudo que há de ruim quando o assunto é a falta de compaixão. Porém, as aparências não podem nos eximir de encarar os fatos de frente e vermos quem realmente somos como sociedade (sem nenhum complexo de vira-latas). Não cabe aqui apontar a culpa infinitesimal que cada brasileiro possa vir a ter na conta dos milhares de mortos, mas sim fazer dessa tragédia coletiva um momento de reflexão sobre o Brasil.
Em 2019 morreram no Brasil 41.635 por causa de crimes violentos, tratou-se de um número a ser comemorado, pois foi o menor desde 2007. Em 2018 na Argentina foram 2.821 homicídios. Neste mesmo país, em 2016, foi realizado um grande protesto nacional em função do estupro e assassinato de uma jovem de 16 anos na cidade de Mar del Plata. Há sim no Brasil manifestações por causa de assassinatos, lembremo-nos o que fizemos quando Marielle foi assassinada, mas nenhuma delas com a mesma abrangência e magnitude das várias já realizadas por nossos Hermanos. Quando fazemos a comparação entre a nossa SOCIEDADE e a deles, ambas formada por cada indivíduo que foi socializado e habita as respectivas nações, temos que admitir que o valor da vida é menor cá do que lá. É nesse sentido que todos somos responsáveis pelo que ocorre hoje no Brasil.
Fico muito aliviado em pensar que Bolsonaro é o principal responsável, que o meu quinhão nas 100 mil mortes é infinitesimal. Mas ainda que tenha seguido todas as recomendações da ciência, que tenha protegido adequadamente a mim e a todos que me cercam, devo admitir que não tentei criar um movimento social tipo os Somos 70 porcento, só que voltado para deter, ainda que um pouco, a escalada de mortes. Publico artigos e gravo vídeos no YouTube de forma regular, nos dois casos não foi minha prioridade comentar as mortes tampouco registrar os marcos a cada 10 mil óbitos. Não fiz isso porque a audiência é maior quando os assuntos são outros, em particular quando comento ou falo da sucessão presidencial em 2022. O público, a sociedade, prefere que fale disso e não das mortes. Sou parte desta sociedade.
Até onde a minha memória permite lembrar não creio ter havido nenhum panelaço nacional a cada 10 mil falecimentos, não vi nenhum partido político, sindicato ou organização social convocando para isso. Se não o fizeram é porque provavelmente sabem que fracassariam, que a sociedade não agiria coletivamente motivada por isso. No meu livro A cabeça do brasileiro, sempre atual, está demonstrada a natureza fatalista de nossa mentalidade predominante. Para a maioria, hoje, a morte é algo normal, natural, e grande parte do que está acontecendo está fora do controle dos homens, incluindo o presidente.
Bolsonaro não é uma figura à parte de nossa sociedade, ele é produto dela. A oposição a Boslonaro também não está descolada de quem somos como nação, é exatamente por isso que ela não consegue liderar uma ação coletiva que se oponha com vigor à triste marca dos 100 mil mortos. Caminhamos para a marca de 200 mil e nada será feito por você, por mim, pela oposição e por Bolsonaro para que isso seja evitado. O Brasil é assim, somos assim. Neste momento o melhor a fazer é admitirmos esta realidade, sob pena de não avançarmos em direção a uma maior valorização da vida.
Isso não faz o Brasil pior do que nenhum outro país, e aqui registro a minha já antiga postura anti complexo de inferioridade, anti-viralatismo. Como qualquer país do mundo temos virtudes e defeitos coletivos. Não se mede um país por um episódio histórico apenas, fosse isto não haveria hoje a admiração que há pela Alemanha. Sociedades, nações e países, são apenas diferentes entre si. E uma dessas diferenças pode estar na capacidade de reconhecer suas falhas coletivas, em vez de confortavelmente transferir a responsabilidade para este ou aquele indivíduo.
Muito bom! Começar por por reconhecer as características seria o primeiro passo. Será que tem adesão significa? Alguém tem que começar. Vou compartilhar…
Discordo de muita coisa que você fala, mas acho que esse texto resume bem o contexto atual. Nós não ligamos. Já tinha lido uma vez sobre certa conformidade dos que lutavam contra a ditadura 64-85, o que na época me espantou, mas hoje eu entendo. É muito provável que ele seja reeleito.
Polícia de SC acabou com umas 20 festas com aglomeração em Balneário Camboriú. Todas de playboy. Todas em lugares de luxo. Vocês querem apostar quanto comigo que daqui uns 30 anos vai ter uma porrada de TCC sendo feito elevando essas aglomerações e festinhas de playboys durante a pandemia ao status de RESISTÊNCIA.
Já posso até imaginar os tons triunfalistas, heróicos, emotivos dos temas, os autores citados e etc.
Igualzinho Junho de 2013..